quarta-feira, 20 de abril de 2011

Os anos de chumbo não acabam

9/8/2008

unisinos

"Fala isso para minha mãe, Eunice, que foi presa sem acusação com a filha de 14 anos, Eliana, em 1971 no DOI/Codi do Rio de Janeiro, e chora até hoje a morte sob tortura e desaparecimento do meu pai, Rubens.

Ela lamenta todos os dias que os criminosos estejam soltos e acobertados pela lei. E não faz questão de saber onde estão os fragmentos ósseos do marido", escreve Marcelo Rubens Paiva, escritor, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 09-08-2008.

"Esquecemos o elementar: a Lei da Anistia não é democrática. No final dos anos 70, estudantes e a sociedade civil saíram em passeatas, reprimidas com bombas e cassetetes, para defender uma anistia ampla, geral e irrestrita", afirma o escritor.

Eis o artigo.
Surpreendeu a declaração em conjunto do ministro da Justiça, Tarso Genro, e do secretário Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi. Eles pedem punição a torturadores perdoados pela Lei da Anistia.

Entidades de defesa dos direitos humanos e familiares de perseguidos políticos comemoram. É a posição oficial do governo brasileiro? Não. Nelson Jobim, ministro da Defesa, afirmou que a revisão é matéria do Legislativo, não do Executivo.

Uma ação declaratória de reparação movida por ex-presos políticos contra o coronel reformado do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, quer o reconhecimento de que o militar comandou sessão de torturas no DOI/Codi.

O Ministério Público Federal pede a responsabilização civil de antigos comandantes do DOI por tortura e mortes. Os procuradores Marlon Alberto Weichert e Eugênia Fávero se reuniram há três dias com a National Security Archives, entidade que funciona na Biblioteca do Congresso Americano, para elaborar petições para a abertura de arquivos sigilosos norte-americanos sobre a ditadura brasileira. 

Para o jurista Hélio Bicudo, não há base jurídica a interpretação em vigor de que a lei perdoa torturadores. Ele defende que os militares sejam julgados. O Grupo Tortura Nunca Mais adverte que o Brasil é signatário de carta das Nações Unidas que afirma que a tortura é um crime comum e imprescritível.

No coro dos contrários, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, jurista, afirma que o espírito da Lei da Anistia é colocar uma pedra nos acontecimentos, e que o passado “tem que ser encerrado, pelo bem do Brasil”.

Para o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), a sociedade não quer rever a Lei da Anistia, que teria perdoado os dois lados.

O presidente nacional do PPS, Roberto Freire, que integrou a comissão de deputados e senadores que elaborou a lei em 1979, considera um equívoco a sua reformulação. Segundo ele, o governo está sendo omisso, porque, em vez de propor uma “desanistia”, deveria ter “a coragem de abrir os arquivos para saber onde estão os desaparecidos”.

Fala isso para minha mãe, Eunice, que foi presa sem acusação com a filha de 14 anos, Eliana, em 1971 no DOI/Codi do Rio de Janeiro, e chora até hoje a morte sob tortura e desaparecimento do meu pai, Rubens. Ela lamenta todos os dias que os criminosos estejam soltos e acobertados pela lei. E não faz questão de saber onde estão os fragmentos ósseos do marido.

A posição de Tarso causou ira no Clube Militar, que planeja um seminário em que serão apontadas as autoridades do governo Federal com “passado terrorista”.

O objetivo dos militares é discutir propostas para que os excessos cometidos por guerrilheiros durante a ditadura também sejam punidos.

Petistas como o deputado Jilmar Tatto e Cândido Vaccarezza criticaram Tarso por entrar em confronto aberto com as Forças Armadas. Alguns analistas políticos afirmam que a discussão não é prioritária para a geração atual.

Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirmou que a interpretação do ministro - de que os crimes de tortura praticados durante o regime militar devem ser julgados - é constitucional.

“A Lei de Anistia não pode ser interpretada de forma a alcançar crimes não-políticos e de lesão à humanidade, como o de tortura”, defendeu o advogado.
 
No site do Estadão, o leitor identificado como weiss3685 -@estadao.com.br postou a réplica: “Então o senhor Serrano nos informa que a Constituição de 1988 tem caráter retroativo, e a Lei de Anistia não pode ser interpretada de forma a alcançar crimes não-políticos e de lesão à humanidade? Xi, Tarso, acho que você, Dilma, Genoino, Dirceu entre muitos outros, então, dançaram! Porque, afinal, os assassinatos, seqüestros, roubos, ataques a bomba entre muitos outros crimes que vocês cometeram não poderá (sic.) ser perdoado por esta mesma lei, porque também eram crimes comuns, uma vez que nenhum de vocês era político. Cadeia pra estes safados! Ou exílio em Cuba ou China, os paraísos comunistas que eles tanto adoram.”

Para Suzana Lisboa, da comissão de familiares de desaparecidos, a Lei da Anistia não abrange autores dos chamados crimes de sangue, seqüestro, assaltos a bancos: “Muitos condenados pelo regime militar por esses crimes ficaram presos e só conseguiram sair quando suas penas foram atenuadas.”

Se não houve anistia para todos os presos políticos, por que haveria para os que torturaram em nome do Estado? O debate mostra que é preciso enfrentar o passado, abrir os arquivos, apontar os erros e julgar.

Esquecemos o elementar: a Lei da Anistia não é democrática. No final dos anos 70, estudantes e a sociedade civil saíram em passeatas, reprimidas com bombas e cassetetes, para defender uma anistia ampla, geral e irrestrita.

O governo não-eleito de João Figueiredo enviou a lei, aprovada com restrições por um Congresso engessado; parlamentares biônicos, interventores escolhidos por militares, ou eleitos por um regime bipartidário de representatividade duvidosa.

A Constituição de 88 varreu o entulho autoritário e reescreveu as leis brasileiras. Mas a da Anistia ficou intacta. Medo de parte da “sociedade”, que não queria reviver feridas ou provocar os militares.

Ficaremos taxados pela história como os brasileiros que não encararam os seus erros. Enquanto a lei não for revista, e os criminosos não forem julgados, os anos de chumbo nunca acabarão.

Não se vira a página por decreto. A história permanece viva, apesar de muitos sugerirem o esquecimento. Ainda bem: a humanidade se constrói com o passado nas mãos. O homem é o que é, porque julga os seus atos. Evolui aquele que rompe e condena.

Países da América Latina fazem revisão das leis de anistia. É uma tendência das cortes internacionais classificar como crime comum os que envolvem tortura e demais tipos de violência física e psicológica durante regimes de exceção. Há dados que provam que diminuiu o índice de criminalidade em países que passaram a limpo o seu passado.

Kathryn Sikkink, professora de Ciências Políticas da Universidade de Minnesota, indica que a lei brasileira de anistia contribui para a violência policial, já que aumenta a sensação de impunidade entre agentes públicos que cometem tortura, abuso de autoridade e mortes.

O fato de o Estado pagar indenizações e reconhecer as vítimas não significa que não deve haver responsabilização dos culpados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...